Hidrogênio, a bala de prata da transição?*

Stefania Relva**

Um iceberg do hidrogênio está circulando na internet. Na superfície, abundância, custo baixo, alta densidade energética e eletricidade gratuita. Sob a água, no entanto, enormes desafios relativos à sua versão produzida com baixas emissões de gás carbônico: caro para produzir, extrair, armazenar e transportar.

Com exceção da eletricidade gratuita, tudo isso é verdadeiro. Apesar da enorme importância do hidrogênio de baixas emissões para a transição energética global, sua participação vai depender das condições de cada geografia, ocupando, em muitos casos, um papel complementar, e não prioritário.

Esse deve ser o caso do Brasil, pelo menos num primeiro momento. Por aqui, o hidrogênio limpo tende a ser produzido em condições competitivas principalmente no Nordeste do país, graças ao potencial de energia solar e eólica. Já nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, outras rotas tecnológicas podem ser adotadas, como a produção do insumo a partir da reforma de biometano.

Evidentemente que, por se tratar de uma indústria nascente, seu custo ainda é muito superior ao da produção fóssil.  A evolução da sua cadeia passa por diversas etapas que tendem a reduzir os valores finais, como a definição de marcos legais e regulatórios, desenvolvimento tecnológico, financiamento, infraestrutura etc.

Além disso, a descarbonização da nossa economia – e de muitos países do Sul Global – dispõe de alternativas considerando recursos existentes ou consolidados mais acessíveis de imediato, que podem contribuir para a manutenção da renovabilidade da nossa matriz elétrica e a ampliação das fontes limpas de energia.

Essas fontes incluem o carvão vegetal, produzido a partir de reflorestamento sustentável; o biogás (ou biometano), obtido a partir da decomposição de resíduos agropecuários, urbanos e sanitários; e os biocombustíveis líquidos para os sistemas de transporte. O potencial de produção de energia elétrica com fontes limpas também pode contribuir com a eletrificação direta de processos, ao mesmo tempo em que o aumento da eficiência energética pode reduzir o montante de energia necessário.

O principal desafio, em termos de planejamento, é alinhar a oferta de energéticos existentes, os recursos que ainda têm de ser desenvolvidos e os usos finais potenciais de cada um, sempre buscando as soluções com melhor relação custo x benefício.

No Brasil, o setor de energia é o terceiro principal emissor de gases de efeito estufa (atrás do desmatamento e da produção agropecuária). Por ora, as fontes limpas indicadas acima podem desempenhar papéis muito relevantes na suadescarbonização, com a substituição do carvão mineral pelo vegetal sustentável e do gás natural pelo biometano, entre outras possibilidades. Já o hidrogênio deverá ser destinado como insumo de alguns processos industriais. Ao mesmo tempo, vale destacar que é grande a expectativa de que o hidrogênio brasileiro de baixas emissões contribua com a descarbonização de outras geografias. Certamente isso pode acontecer de maneira relevante, mas não por meio da mera exportação do insumo em que muitos estão apostando.

Num primeiro momento, a exportação do hidrogênio é um processo importante para o desenvolvimento da cadeia no Brasil, com ganho de escala e desenvolvimento tecnológico. Mas resumir nossa participação na transição energética global com base na exportação na prática corresponde a exportar água,eletricidade e possivelmente subsídios, prorrogando a nossa condição de fornecedor de commodities de baixo valor agregado.

Por isso, em paralelo a esse desenvolvimento, o país tem de avançar justamente no uso do insumo – de maneira combinada com os demais energéticos limpos – para a descarbonização da produção nacional. Considerando que esses produtos de baixas emissões têm maior valor agregado e custos superiores no mercado internacional, sua exportação pode efetivamente agregar valor à nossa economia.

Mas para isso, é necessário estabelecer regulações e certificações, tanto da produção como do transporte, armazenamento e uso do hidrogênio em território nacional, gerando, deste modo, o desenvolvimento e modernização do parque industrial brasileiro.

Afinal, a transição energética não pode ser um fim em si mesma, e sim um meio para o mundo alcançar uma economia mais sustentável e equitativa. Por aqui, as vantagens energéticas combinadas com condições favoráveis (disponibilidade de infraestrutura, parque industrial, mão de obra qualificada, pesquisa e desenvolvimento etc.) abrem espaço para um processo de neoindustrialização verde que impulsione nosso desenvolvimento socioeconômico, sem depender exclusivamente do hidrogênio.

* Este artigo foi originalmente publicado na coluna A Transição Explicada, da EPBR.

** Stefania Relva é consultora sênior do Instituto E+ Transição Energética.

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