De vilão a mocinho: o carvão vegetal e a neutralidade climática da metalurgia*

Philipp D. Hauser e Marina Almeida**

A idade da pedra não terminou por causa da falta de pedras, mas com o uso do carvão vegetal. Há 5 mil anos, a humanidade aprendeu a controlar a carbonização da madeira e usar o carvão vegetal para converter minérios em cobre, bronze e ferro. Durante milênios, esse carvão serviu como base do desenvolvimento das sociedades e sua produção levou a exaustão de muitas florestas.

A substituição do carvão vegetal pelo mineral se deu a partir do final do século XVIII. A ampla disponibilidade e o baixo custo da fonte fóssil alimentaram a revolução industrial numa escala sem precedentes. O desmatamento diminuiu, mas o uso exponencial do carvão fóssil contribuiu para as mudanças globais do clima.

Até hoje, o carvão mineral é um dos principais energéticos do mundo, com um consumo global de 8,4 bilhões de toneladas em 2022. Cerca de 90% desse total é usado para produzir eletricidade e calor, que será gradualmente substituído por eletricidade renovável cada vez mais competitiva[1]. Essa substituição não é possível, no entanto, no caso das cerca de 1 bilhão de toneladas usadas nas indústrias de aço, ferroligas e silício, que exigem o carbono como matéria-prima.

É por isso que essas indústrias “difíceis de descarbonizar” estão no centro da discussão sobre a neutralidade climática industrial. No caso da siderurgia, por exemplo, o hidrogênio renovável e a reciclagem podem substituir 70% do carvão, reduzindo as emissões. No entanto, a neutralidade climática efetiva só pode ser alcançada com o uso do biocarbono, um carvão vegetal produzido de forma industrial e sustentável[2]. O mesmo se aplica à produção de ferroligas, como manganês e cromo, que são essenciais para a produção de aço, e ao silício metálico, identificado como um elemento estratégico pela Europa[3] e pelos EUA[4] devido à sua importância como matéria-prima para a produção de painéis fotovoltaicos, baterias, microchips e materiais de alto desempenho.

O Brasil tem uma posição de vanguarda para a metalurgia verde. Primeiro, o país é rico em minério de ferro e outros minerais essenciais para a economia global. Em segundo lugar, tem eletricidade renovável abundante, fundamental para qualquer processo industrial de baixa emissão. Além disso, tem experiência com processos industriais baseados em carvão vegetal: enquanto outros países industrializados abandonaram essa prática há séculos, por aqui ele continuou a ser usado em diversos processos metalúrgicos.

O uso do carvão vegetal foi estimulado, ao longo da história brasileira, para o processamento e refino de minerais para exportação[5]. Na época, a contribuição do insumo para a derrubada de florestas era vista como um efeito positivo, favorecendo o desenvolvimento de pastagens. No auge da década de 1980, uma média de 7 milhões de toneladas de carvão vegetal foram produzidas a cada ano a partir de fontes nativas não sustentáveis, contribuindo para o desmatamento[6].

A situação mudou com o advento das plantações de eucalipto e a melhoria de sua produtividade, pela Embrapa. Paralelamente, o governo concedeu incentivos fiscais para o desenvolvimento de plantações para a produção de madeira para construção, energia, carvão vegetal, celulose e papel. Com base nesses desenvolvimentos, as plantações florestais do Brasil cresceram de 1,5 milhão de hectares em 1985 para 8,8 milhões de hectares em 2022[7].

Com esse suprimento de fontes renováveis de madeira, a indústria metalúrgica reduziu gradualmente seu consumo de carvão de desmatamento: de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a participação do carvão vegetal proveniente de plantações aumentou de 50%, em 2006, para mais de 90% em 2020.

Apesar do sucesso dessa transição, o uso de carvão vegetal renovável na metalurgia está estagnado, ao passo que a produção e a exportação de celulose cresceram 50% na última década[8]. Como resultado, enquanto as papeleiras promoveram o plantio de mais de três milhões de hectares de florestas, a contribuição do setor metalúrgico ficou limitada a um milhão de hectares. Hoje, a questão é se o foco cada vez maior na neutralidade climática pode impulsionar o uso do biocarbono para a produção de metais verdes e assim impulsionador atividades de reflorestamento sustentável.

Biocarbono, motor da neoindustrialização sustentável

Os Estados Unidos e a Europa estão desenvolvendo políticas para mitigar as mudanças climáticas e aumentar sua autonomia estratégica em relação à China e à Rússia, o que representa oportunidades para o setor metalúrgico brasileiro. Isso porque o país tem condições de atender as exigências das políticas americanas e europeias relativas à produção de ferro-gusa, aço, ferroligas e outros produtos industriais de baixa emissão. Além disso, a demanda por silício verde e o desejo global de diversificação das fontes de suprimento oferecem ao Brasil uma oportunidade única de crescimento nesse setor.

Essa mudança em curso pode estimular a expansão das atividades de reflorestamento no Brasil. Entretanto, para aproveitar essa oportunidade, o país deve enfrentar alguns desafios, a maioria dos quais relacionada à necessidade de investir em tecnologias modernas para a substituição de práticas tradicionais e ineficientes de carbonização, como listado a seguir.

  • Aumentar o rendimento da produção: o rendimento gravimétrico da produção de carvão vegetal aumentou apenas marginalmente – de 24%, em 1970, para 26%, em 2022 –, mantendo-se 30% abaixo do limite técnico[9].
  • Eliminação das emissões de metano: as metodologias tradicionais de carbonização com um rendimento de 26% geram emissões de cerca de 78 kg de metano por tonelada[10]. Considerando que o potencial de aquecimento global do metano é 28 vezes maior do que o do CO2, são 2,6 toneladas de CO2e por tonelada de carvão vegetal produzido. Considerando uma produção de 6,7 milhões de toneladas de carvão vegetal na média dos últimos 10 anos, isso representa emissões de 14,6 milhões de toneladas de CO2e que devem ser evitadas para garantir a neutralidade climática da solução.
  • Aumento da eficiência energética: as perdas de energia na conversão da madeira em carvão vegetal são de 47%. Em um consumo médio de 26 milhões de m³ de madeira, isso se traduz em perdas equivalentes a 43 TWh9.
  • Aumentar a eficiência dos recursos: considerando o uso de 26 milhões de m³ de madeira, um aumento no rendimento gravimétrico para 30% permitiria aumentar a produção em mais de 1 milhão de toneladas.
  • Aumento da qualidade: a produção de carvão vegetal com metodologias tradicionais gera um produto com qualidades variáveis em termos de conteúdo de carbono, umidade e granulometria, o que representa um desafio para os processos industriais. Com processos pirolíticos industriais mais estáveis e confiáveis, esse problema pode ser minimizado, levando à produção de biocarbono como produto industrial otimizado para a produção de metais com maior eficiência, rendimento e qualidade.

O enfrentamento desses desafios passa, portanto, pelo desenvolvimento e o uso de biorrefinarias pirolíticas modernas e eficientes, que permitam a substituição da produção tradicional e poluente do carvão vegetal pela produção industrial de biocarbono com alto rendimento e qualidade, além da conversão de metano e outros poluentes prejudiciais ao clima em coprodutos valiosos.

Paralelamente, o Brasil terá de demonstrar sua capacidade de eliminar o desmatamento ilegal e aprimorar ainda mais suas práticas de manejo sustentável de plantações florestais. Por fim, terá que se engajar com os diversos stakeholders da economia global para oferecer transparência e garantir o reconhecimento de suas práticas sustentáveis em silvicultura, produção de biocarbono e seu uso para produzir ferro, aço, ferroligas e silício verdes, insumos essenciais para uma economia neutra em termos de clima e, portanto, fundamentais para a neoindustrialização sustentável do Brasil.

* Artigo originalmente publicado na coluna A Transição Explicada, da agência EPBR.

** Philipp D. Hauser é presidente do Conselho Deliberativo do Instituto E+ Transição Energética e diretor de Desenvolvimento de Negócios do Grupo SOLER e Marina Almeida é analista técnica do Instituto E+ Transição Energética.

[1] Demand – Coal 2023 – Analysis – IEA

[2] A Agora Industry calcula que a neutralidade climática da indústria siderúrgica exigiria cerca de 70 milhões de toneladas de  biocarbono: A-EW_298_GlobalSteel_Insights_WEB.pdf (agora-energiewende.de)

[3] Matérias-primas críticas – Comissão Europeia (europa.eu)

[4] O que são materiais críticos e minerais críticos? | Departamento de Energia

[5]A. C. Diegues et al (1999) “Desmatamento e modos de vida na Amazônia”

[6] Uhlig, A., Goldemberg, J., & Coelho, S. T. (2008). O uso de carvão vegetal na indústria siderúrgica brasileira e o impacto sobre as mudanças climáticas. Revista Brasileira de Energia, 14(2), 67-85. https://sbpe.org.br/index.php/rbe/article/view/224

[7] Dados obtidos do MapBiomas Brasil

[8] Ibá (2024) “Histórico de Desempenho Celulose”

[9] Calculado com base dos dados do Balanço Energético Nacional.

[10] Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) (2015) “Modernização da produção de carvão vegetal“.

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