Energia com racionalidade técnica

A reformulação do setor elétrico é fundamental para a transição energética no Brasil, não só porque dela depende a continuidade da expansão do parque gerador por meio de fontes renováveis, mas também a atração de novos investimentos produtivos por meio do powershoring. O conceito de powershoring pressupõe a transferência de investimentos produtivos para regiões com oferta de energia renovável competitiva, combinando as urgentes reduções nas emissões de gases de efeito estufa com bons retornos financeiros. Graças a seu potencial de energia limpa, oferta de minerais críticos e outras matérias-primas, disponibilidade de mão de obra qualificada e infraestrutura, entre outros fatores, o Brasil é um forte candidato nessa nova lógica dos investimentos globais.  

O problema é que o modelo elétrico está defasado diante das transformações vividas pelo próprio setor nos últimos anos, o que compromete o custo da energia para os consumidores. 

As regras em vigor foram definidas há mais de 20 anos, numa época em que o sistema era majoritariamente composto por hidrelétricas e crescente participação de térmicas. De lá para cá, houve uma diversificação impressionante das fontes no país, com o ingresso de enormes volumes de energia solar e eólica. 

Essas transformações aceleraram a transição que a maioria dos países dificilmente poderá conseguir nos próximos anos. Por outro lado, de uma maneira ou de outra, provocaram a criação de subsídios que pressionam cada vez mais os custos da energia.  

Hoje, o setor elétrico é unânime quanto à necessidade de se reformar o setor. Mas os desafios para isso ganharam uma escala muito superior, com os diversos segmentos cada vez mais organizados para defender a manutenção ou a ampliação de seus benefícios. Nesse contexto, os desafios de reformular o modelo vão muito além de se reunir todos os agentes numa sala e buscar um consenso possível. As transformações em curso no contexto das mudanças climáticas e da nova geopolítica global impõem, no entanto, maior agilidade no enfrentamento do problema. Por isso, sem perder de vista a necessidade de uma reforma geral, precisamos buscar ajustes imediatos guiados pela racionalidade técnica. Hoje, o principal desafio da operação do sistema é a falta de potência, ou seja, oferta imediata de grandes volumes de energia em meio a variações significativas do consumo e da geração. Tais variações têm ocorrido no início da tarde – por conta das temperaturas elevadas em boa parte do país na primavera e no verão – e no final do dia – por conta da saída do sistema das usinas solares. Para enfrentá-las, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) tem lançado mão do acionamento de termelétricas a gás. Só que, na maioria dos casos, trata-se de usinas que demoram muito tempo para atingirem a produção prevista, impactando de maneira ainda mais significativa as emissões e os custos dos consumidores. Ao mesmo tempo, assistimos ao crescimento dos cortes de geração de eólicas e solares por falta de demanda e de infraestrutura para o escoamento da energia, com novas ameaças de repasses bilionários às tarifas. Alternativa de reversão desse quadro é o uso das hidrelétricas com reservatórios. Considerando sua alta flexibilidade, essas usinas, hoje despachadas com base em seu custo, poderiam acompanhar com muito mais agilidade as variações da carga. 

Além da operação do sistema, essa racionalidade precisa ser observada nos processos de contratação de energia, dando-se prioridade a usinas existentes e, no caso de novos projetos, ao atendimento dos requisitos setoriais com menores custos e impactos ambientais. Esses cuidados, além de desafiadores, são insuficientes, sozinhos, para o equacionamento dos problemas setoriais. De qualquer forma, são alternativas relativamente factíveis e que podem fazer uma enorme diferença na atração dos investimentos produtivos que a economia brasileira e a transição energética global tanto precisam. 

* Artigo originalmente publicado no jornal A Tribuna.   

** Rosana Santos é diretora-executiva do Instituto E+ Transição Energética. 

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