Rosana Santos*, publicado originalmente no Jornal A Tribuna
Recentemente soube de uma criança que optou por montar um quebra-cabeça ao contrário, guiando-se pelo padrão de golfinhos do verso das peças. O jogo não só se mostrou muito mais complicado, como, quando ajustado para a posição correta, um conjunto de peças encaixadas não condizia em absoluto com a figura multicolorida de peixes marinhos impressa na caixa, uma vez que o formato de algumas delas se repetia, mas sem a lógica de continuidade no desenho principal.
Voltar ao brinquedo é útil quando precisamos planejar algo: traçar um plano levando em conta os recursos disponíveis e os objetivos almejados é estratégico, ainda mais em se tratando de um projeto de grande complexidade. No caso da transição energética, não é diferente: sem um guia integrado e abrangente, a participação do Brasil pode se liminar a ganhos pontuais, muito aquém das oportunidades de emprego e renda que esse processo nos apresenta.
Felizmente, o país vem construindo, nos últimos meses, um consenso de que a transição deve ser uma alavanca em direção ao desenvolvimento socioeconômico. A ideia é que, mais do que exportar energia limpa na forma de hidrogênio, o país o utilize – bem como outros energéticos limpos, como o biometano e o carvão vegetal sustentável – em favor da neoindustrialização verde, com a atração de investimentos produtivos que atendam à crescente demanda global por produtos limpos.
Mas, colocar essa visão em prática implica inúmeras etapas, como uma análise quanto à infraestrutura adequada, considerando os equipamentos existentes, reforços necessários ou instalação de novos empreendimentos. No caso dos portos, por exemplo, é preciso também avaliar que o futuro necessariamente significará abarcar novos investimentos industriais, incluindo a produção local de hidrogênio e de combustíveis de baixas emissões, mudanças na pauta de exportações hoje predominantemente baseada em produtos primários, e, provavelmente, novas cadeias industriais, incluindo a produção de equipamentos para eólicas offshore.
Nesse contexto, vale destacar que a viabilização e o desenvolvimento dessas iniciativas devem se calcar em coordenação multisetorial, transversal e milimétrica de decisões e ações, fugindo do tradicional foco nos interesses de segmentos específicos em detrimento do todo e do crescimento sustentável, estrutural e estruturado. Ao mesmo tempo, o plano diretor dessa revolução verde deve incorporar ambiente de negócios saudável e mecanismos efetivos de incentivo e de financiamento para que os projetos saiam do papel.
Golfinhos azuis sozinhos contra um fundo branco podem ser incríveis (e a curiosidade das crianças também), mas, em termos de transição e transformação, precisamos enfrentar da melhor maneira a complexidade em favor da riqueza maior, do fundo do mar: uma peça de cada vez, mas com a segurança de um plano estratégico por trás, para obter o melhor resultado e da maneira mais eficiente.
* Rosana Santos é diretora executiva do Instituto E+ Transição Energética.